- Sei um ninho!
A mãe levantou
para ele os olhos negros, a interrogar. O Pai, esse, perdido no alheamento
costumado, nem ouviu. Mas o pequeno, ou para responder à Mãe, ou para acordar o
Pai, repetiu:
- Sei um ninho!
O velho ergueu
finalmente as pálpebras pesadas, e ficou atento, também.
A criança, então,
um tudo-nada excitada, contou. Contou que à tarde, na altura em que regressava
a casa com a ovelha, vira sair um pintassilgo de dentro dum grande cedro. E
tanto olhara, tanto afiara os olhos para a espessura da rama, que descobrira o
manhuço negro, lá no alto, numa galha.
A Mãe bebia as
palavras do filho, a beijá-lo todo com a luz da alma, O Pai regressou ao caldo.
Mas o menino
continuou. Disse que então prendera a cordeira a uma giesta e trepara pela
árvore acima.
De novo o Pai
levantou as pálpebras cansadas, e ficou tal e qual a Mãe, inquieto, com a
respiração suspensa, a ouvir.
E o pequeno ia
subindo, O cedro era enorme, muito grosso e muito alto. E o corpito, colado a
ele, trepava devagar, metade de cada vez. Firmava primeiro os braços; e só
então as pernas avançavam até onde podiam. Aí paravam, fincadas na casca
rija.
A subida levou
tempo. Foi até preciso descansar três vezes pelo caminho, nos tocos duros dos
ramos. Por fim, o resto teve de ser a pulso, porque eram já só vergônteas as
pernadas da ponta.
Transidos, nem o Pai nem a Mãe diziam nada. Deixavam, apavorados,
mudos, que o pequeno chegasse ao cimo, à crista, e pusesse os olhos inocentes
no ovo pintado. O ninho tinha só um ovo.
Aqui, o menino fez
parar o coração dos pais. Inteiramente esquecido da altura a que estava,
procedera como se viver ali, perto do céu, fosse viver na terra, sem precisão
dos braços cautelosos agarrados a nada. E ambos viram num relance o pequeno
rolar, cair do alto, da ponta do cedro, no chão duro e mortal de Nazaré.
Mas a criança,
apesar de mostrar, sem querer, que de todo se alheara do abismo sobre que
pairava, não caiu. Acontecera outra coisa. Depois de pegar no ovo, de contente,
dera-lhe um beijo. E, ao simples calor da sua boca, a casca estalara ao meio e
nascera lá de dentro um pintassilgo depenadinho.
E o menino contava
esta maravilha com a sua inocência costumada, como quando repetia a história de
José do Egipto, que ouvira ler a um vizinho.
Por fim, pôs
amorosamente o passarinho entre a penugem da cama, e desceu. E agora, um nada
comprometido, mas cheio da sua felicidade, sabia um ninho.
A ceia acabou num
silêncio carregado. Só depois, à volta do lume quente do cepo de oliveira em
brasido, é que os pais disseram um ao outro algumas palavras enigmáticas, que o
pequeno não entendeu. Mas para quê entender palavras assim? Queria era guardar
dentro de si a imagem daquele passarinho depenado e pequenino. Isso, e ao mesmo
tempo olhar cheio de deslumbramento os dedos da Mãe, que, alvos de neve, fiavam
linho. E tanto se encheu da imagem do pintassilgo, tanto olhou a roca, o fuso,
e aqueles dedos destros e maravilhosos, que daí a pouco deixou cair a cabeça
tonta de sono no regaço virgem da Mãe.
In “Bichos” Miguel Torga, 8ª edição,
Gráfica de Coimbra
Uma interpretação possível para Miguel Torga propor para este conto o título de Jesus será o facto da criança ser comparada a Jesus por ser
completamente inocente “a sua inocência costumada”, capaz do milagre de dar à
luz com um simples beijo. A referência ao “regaço virgem da Mãe” pode ser interpretado
como uma alusão à figura da Virgem Maria. Também o facto de o menino viver numa
terra de nome Nazaré, sugere a associação de Jesus a Nazaré.
Sem comentários:
Enviar um comentário