Agora entro, sento-me de perna cruzada,
puxo um cigarro, e à pergunta de sempre respondo soprando o fumo:
- Só a barba.
Ora é de há pouco este meu à-vontade diante de Mestre
Ilídio Finezas.
Lembro-me muito bem de como tudo
se passava. Minha mãe tinha que fingir-se zangada. Eu saía de casa, rente à
parede, sentindo que aquilo era pior que ir para a escola.
Mestre Finezas puxava um
banquinho para o meio da loja e enrolava-me numa enorme toalha. Só me ficava a
cabeça de fora.Como o tempo corria devagar!
A tesoura tinia e cortava junto
das minhas orelhas. Eu não podia mexer-me, não podia bocejar sequer. - «Está
quieto, menino» - repetia mestre Finezas segurando-me a cabeça entre as pontas
duras dos dedos: - «Assim, quieto!» - Os pedacitos de cabelo espalhado pelo
pescoço, pela cara, faziam comichão e não me era permitido coçar. Por entre as
madeixas caídas para os olhos via-lhe, no espelho, as pernas esguias, o carão
severo de magro, o corpo alto curvado. Via-lhe os braços compridos arqueados
como duas garras sobre a minha cabeça. Lembrava uma aranha.
E
eu – sumido na toalha, tolhido numa posição tão incómoda que todo o corpo me
doía – era para ali uma pobre criatura indefesa nas mãos de Mestre Ilídio
Finezas.
Nesse tempo tinha-lhe medo. Medo
e admiração. O medo resultava do que acabo de contar. A admiração vinha das
récitas dos amadores dramáticos da vila.
Era
pelo Inverno. Jantávamos à pressa e nessas noites minha mãe penteava-me com
cuidado. Calçava uns sapatos rebrilhantes
e umas peúgas de seda que me enregelavam os pés.
Saíamos. E, no negrume da noite que
afogava as ruas da vila, eu conhecia pela voz famílias que caminhavam na nossa
frente e outras que vinham para trás. Depois, ao entrar no teatro, sentia-me
perplexo no meio de tanta luz e gente silenciosa. Mas todos pareciam corados de
satisfação.
Daí
a pouco, entrava num mundo diferente. Que coisas estranhas aconteciam! Ninguém
ali falava como eu ouvia cá fora. E mesmo quando calados tinham outro aspecto;
constantemente a mexerem os braços. Mestre Finezas era o que mais se destacava.
E nunca, que me recorde, o pano desceu, no último acto, com Mestre Finezas
ainda vivo. Quase sempre morria quando a cortina principiava a descer e, na
plateia, as senhoras soluçavam alto.
Aquelas
desgraças aconteciam-lhe porque era justo e tomava, de gosto, o partido dos
fracos. E, para que os fracos vencessem, mestre Finezas não tinha medo de nada
nem de ninguém. Heroicamente, de peito aberto e com grandes falas ia ao
encontro da morte.
Eu
arrepiava-me todo. Uma noite mestre Finezas morreu logo no primeiro ato. Foi um
desapontamento. Todos criticaram pelo corredor, no intervalo: - «O melhor
artista morrer mal entra em cena…! Não está certo! Agora vamos gramar quatro
actos só com canastrões!» - dizia o doutor delegado a meu pai
Mas
a cena tinha sido tão viva e a sua morte tão notada durante o resto do
espectáculo que, no outro dia, me surpreendi ao vê-lo caminhando em direção à
loja.
Ora
havia também um outro motivo para a minha admiração. Era o violino.
Mestre Finezas, quando não tinha fregueses, o que era frequente durante a maior
parte do dia, tocava violino. E muita vez aconteceu eu abandonar os
companheiros e os jogos e quedar-me, suspenso, a ouvi-lo, de longe.
Era
bem bonito. Uma melodia suave saía da loja e enchia a vila de tristeza.
Passaram anos. Um dia parti para
os estudos. Voltei homem. Mestre Finezas é ainda a mesma figura alta e seca.
Somente tem os cabelos todos brancos.
Olha
bem para mim, - pede-me às vezes – olha bem e diz lá se este é o mesmo homem
que tu conheceste?
Finjo-me admirado de uma tal
pergunta. Procuro convencê-lo de que sim, de que ainda é. Compreende as minhas
mentiras e abana docemente a cabeça:
-
Estou um velho, Carlinhos…
Vou lá de vez em quando. A loja
está sempre deserta. As mãos muito trémulas de mestre Finezas mal seguram agora
a navalha. E também abriram, na vila, outras barbearias cheias de espelhos e
vidrinhos, e letreiros sobre as portas a substituírem aquela bola com um
penacho que mestre Finezas ainda hoje tem à entrada da loja.
Mestre
Finezas passa necessidades. Vive abandonado da família, com a mulher entrevada,
num casebre próximo do castelo. Eu sou o seu único confidente e um dos raros
fregueses.
Algo
de comum nos aproximou. Ilídio Finezas sonhou ser um grande artista, ir para a
capital, e quem sabe se pelo mundo fora. Eu falhei um curso e arrasto, por
aqui, uma vida de marasmo e ociosidade. Há entre mim e esta gente da vila uma
indiferença que não consigo vencer. O meu desejo é partir breve. Mas não vejo
como. E, quando o presente é feio e o futuro incerto, o passado vem-nos sempre
à ideia como o tempo em que fomos felizes. Daí e ser o confidente de Mestre
Finezas.
Leia aqui o conto na íntegra.